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quarta-feira, 11 de abril de 2012

O FIM DO OBSCURANTISMO?

Reproduzo abaixo um trecho do extraordinário texto da premiada jornalista Eliane Brum, publicado no site da revista Época, sobre o drama das mulheres – esmagadoramente pobres – que ficam grávidas de fetos anencéfalos e dependem de uma decisão da Justiça para poder abortar. Agora, o STF está decidindo se mantém ou suprime essa ignomínia. 



Chega de torturar mulheres


O que o STF decidirá, ao julgar a permissão do aborto de anencéfalos, é se o Brasil respeita os direitos humanos – ou prefere seguir infligindo dor a mulheres que tiveram a infelicidade de gerar um feto incompatível com a vida


Eliane Brum, da Época


Depois de quase oito anos, o Supremo Tribunal Federal deverá votar nesta quarta-feira (11) uma ação que decidirá se as mulheres grávidas de um feto anencéfalo (malformação incompatível com a vida) poderão interromper a gestação sem necessidade de autorização judicial. Hoje, elas são obrigadas a peregrinar pela Justiça, em geral por meses. Em alguns casos, o juiz dá autorização, em outros não, numa zona ambígua que depende das crenças pessoais de quem julga. Às vezes, quando o juiz dá a licença, já demorou tanto tempo, ocorreram tantas idas e vindas no processo, que o bebê nasceu e morreu. Em parte porque, ao descobrir que uma mulher pediu a interrupção da gestação anencefálica, grupos religiosos usam a estratégia de atrasar o processo com recursos como, por exemplo, um “habeas-corpus para o feto”. A ação, que já é lenta, tarda ainda mais, até que não exista mais o que julgar. Na prática, como todos sabemos (com exceção dos hipócritas, talvez), as mulheres de classe média resolvem a questão buscando clínicas clandestinas de aborto, para não ter de se submeter à demora e às dificuldades de um processo judicial no Brasil. Quem procura a Justiça são as mulheres pobres, que dependem da rede pública de saúde para interromper uma gravidez. Nesta quarta-feira, o STF terá a chance de estancar – com atraso – uma violação sistemática dos direitos humanos causada por um vácuo na lei, que além de desamparar as brasileiras mais frágeis em um momento dificílimo da vida, as condena à tortura.


[...]


Em 20 de outubro de 2004, o Supremo derrubou uma liminar que permitia interromper a gestação de anencéfalo sem autorização judicial. Um dos ministros disse, ao votar: “Mas quem são essas mulheres? A gente nem sabe se elas existem”. As mulheres severinas existem. E, como veremos, são, sim, torturadas.


A pergunta que o Supremo responderá nesta quarta-feira é a seguinte: “Uma mulher, grávida de um feto anencéfalo, pode interromper a gestação sem necessidade de autorização judicial?”. Espero que a resposta da corte seja afirmativa. Acompanho o percurso dessas mulheres há quase dez anos e me parece claro que este é um debate de direitos humanos. Impedir uma mulher de interromper a gestação de um feto incompatível com a vida, se ela assim o desejar, é condená-la à tortura. Assim como também seria tortura obrigar uma mulher a interromper essa mesma gestação se ela desejar levá-la até o fim porque, por crença religiosa ou qualquer outro motivo, encontra sentido nesse sofrimento.


Este é o ponto: se o feto é incompatível com a vida, só quem pode decidir pela interrupção ou não da gestação é quem o carrega no ventre. Ninguém mais – nem as feministas, nem os padres, nem eu ou você. Em geral, olhar pelo avesso nos ajuda a enxergar o quadro com maior clareza. Imagine se a lei brasileira determinasse o oposto. Ou seja: pela lei, todas as mulheres grávidas de fetos anencéfalos fossem obrigadas pelo Estado a interromper a gestação assim que o diagnóstico tivesse sido comprovado. Se não quisessem, precisariam entrar na Justiça para impedir o aborto compulsório. Neste caso, a violação de direitos humanos seria a mesma. E eu estaria aqui, defendendo o direito dessas mulheres de levar a gestação até o fim com a mesma veemência.


Ninguém deveria poder decidir por uma mulher como ela vai lidar com a gestação, dentro do seu corpo, de um feto que não poderá viver. Só ela sabe da sua dor – e de que escolha será mais coerente com aquilo que ela é – e acredita. As estatísticas mostram que 100% dos anencéfalos morrem: cerca da metade ainda na gestação, a outra metade após o parto. O que acontece hoje – e é essa desigualdade de direitos que o Supremo vai anular ou cristalizar nesta quarta-feira – é que as mulheres que encontram sentido em levar essa gestação até o fim têm seu direito respeitado. E aquelas para quem é insuportável conviver, dia após dia, gerando a morte em vez da vida, são torturadas.

O STF julga a legalidade do aborto de anencéfalos

Nunca cometi a indignidade de julgar uma mulher que decide levar uma gestação de anencéfalo até o fim. O sentido só pertence a ela – e aqueles que a julgarem extrapolam limites de humanidade. Do mesmo modo, lamento aqueles que se apressam a condenar as mulheres para quem a gestação se tornou intolerável. Na tentativa de impor suas crenças para todos, com a soberba de quem acredita deter o patrimônio do bem, cometem barbáries contra pessoas já fragilizadas pela imensa dor que é gerar um filho condenado à morte por uma malformação.

A dor e o luto pelo filho desejado e perdido são inevitáveis, como qualquer mulher ou homem que já testemunhou essa tragédia de perto – ou mesmo de longe – sabe. O outro sofrimento, o de continuar a gerar um filho para enterrá-lo, porque não lhe permitem interromper essa gestação sem futuro, não. Esse martírio pode ser evitado.

Jovens religiosos: as trevas não têm idade

De tempos em tempos, grupos contrários à permissão do aborto no caso de anencefalia exibem uma mulher que decidiu levar a gravidez até o fim como uma espécie de heroína – como se ela fosse uma mãe melhor do que aquela que escolheu interromper a gestação. É uma mentira. Não há heroínas nessa história, apenas mulheres que sofrem. Qualquer oposição entre a mulher que optou por interromper a gestação e aquela que preferiu mantê-la é falsa. Ambas são mulheres que, diante da mesma tragédia, fizeram escolhas diferentes. E ambas devem ser respeitadas na sua decisão, seja ela qual for. O que discutimos aqui é por que uma escolha é reconhecida pelo Estado – e a outra não é.


Há algo importante para compreender nessa tragédia, que talvez parte das pessoas deixe de perceber por não ter convivido com ela. A mulher que se descobre grávida de um feto anencéfalo desejou aquele filho. Em geral, ela o planejou. Quando soube que estava grávida, ela comemorou. E então, num exame com 100% de confiabilidade, ela descobriu que seu filho era anencéfalo. Ou seja, uma malformação letal determinou a impossibilidade de seu filho viver.


Não se trata, portanto, de uma criança deficiente, como alguns definem, torturando também as palavras. Trata-se, como disse o ministro Ayres Britto, em 2004: “O que se tem no ventre materno é algo, mas algo que jamais será alguém”. Impor a essa mulher, submersa em desespero, a acusação de “assassina de crianças”, como alguns o fazem, “em nome da vida”, é cruel. Apenas isso: cruel.

Espero que, depois de quarta-feira, não caiba mais a nenhum de nós opinar sobre a escolha de uma mulher numa situação dolorosa como essa. Aquelas que decidirem levar a gestação até o fim continuarão sendo acolhidas em sua decisão – e aquelas que quiserem interrompê-la também serão amparadas pelo Estado. Ponto.

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