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terça-feira, 18 de outubro de 2011

HISTÓRIA PARTICULAR DA INFÂMIA


Dante e Virgílio no 9º círculo do Inferno (Gustave Doré)

A delação é o mais baixo grau da infâmia e da canalhice humana, como já ensinava Dante Alighieri em A Divina Comédia, ao colocar a traição no 9ºcírculo do Inferno, no mesmo lugar habitado por Lúcifer, o Príncipe das Trevas. Ontem, o Roda Viva reestreou em novo formato entrevistando o “cabo” Anselmo, o marinheiro agitador de 1964 que entrou para a luta armada contra a ditadura militar e depois virou “cachorro”, colaborador ativo da repressão, entregando companheiros e ajudando a armar ciladas para capturá-los, inclusive sua companheira, a paraguaia Soledad Viedma, que estava grávida dele. Sua “justificativa” para tê-la denunciado (“Soledad era filha de dirigentes comunistas paraguaios. Ela foi para Cuba treinar para ser agente comunista em qualquer parte do mundo. Quem escolheu esse risco? Quem escolheu pegar em armas?”) é um dos mais acabados exemplos de torpeza e sordidez humana que eu já vi. E a entrevista, uma das mais asquerosas a que já assisti na vida.

O "cabo" Anselmo como agitador dos marinheiros

Mas o programa trouxe à tona três revelações importantes de Anselmo: a primeira, na verdade um “segredo de polichinelo”, a de que o ex-delegado Romeu Tuma, o “superxerife" da classe média, sabia perfeitamente o que se passava nos porões – ao contrário do que ele sempre propalou –, já que ele era uma de principais engrenagens da polícia política do regime. “Ele tinha mais poder que o Fleury”, assegurou Anselmo. A segunda, pouco conhecida, é que muitos ex-agentes do DEOPS ainda estão na polícia de São Paulo, como seu mentor e amigo, o delegado Carlos Alberto Augusto, conhecido como Carlinhos Metralha. Esse pulha, que trabalha ou trabalhou no 12º DP de São Paulo, atuou na equipe de Fleury no DEOPS entre 1970 e 1977 e foi reconhecido como torturador por Ivan Seixas, do Fórum dos Ex-Presos e Perseguidos Políticos de São Paulo. E, finalmente, a mais saborosa das revelações: a declaração de Anselmo de que, se pudesse votar (ele não tem documentos) teria votado no Serra em 2010!

O chefe dos torturadores, Sérgio Paranhos Fleury

A trajetória do cabo Anselmo continua misteriosa. Acredita-se que sua ação junto ao delegado Sérgio Paranhos Fleury, o sinistro chefão do DEOPS, tenha colaborado para a morte de entre cem a 200 militantes. Mas não se sabe até hoje se em 1964 Anselmo já era infiltrado no movimento dos marinheiros e fuzileiros navais ou se passou para o outro lado em 1970, quando foi preso ao voltar clandestino ao Brasil. Janio de Freitas, em sua coluna de 4 de agosto de 2009, nos dá uma pista: “o compreensível ódio da oficialidade desacatada pelos marinheiros, logo na mais classista das forças militares, transmudou-se em represália feroz quando o golpe possibilitou a prisão da marujada rebelde. Masmorras e prisão nas piores condições em navios foram o destino comum dos apanhados. Não, porém, para o maior incitador da rebelião e das ameaças à oficialidade: Anselmo foi posto em um pequeno e pacato distrito policial na orla da floresta do Alto da Tijuca, sem vigilância especial, e disponível para seus visitantes. Em poucos dias, não precisou de mais do que sair pela porta para a liberdade. Os visitantes perderam a sua nos dias seguintes”. [...] “Também por aquelas alturas, um cartunista jovem e já famoso foi solicitado a ajudar ‘o caçado’ Anselmo, arranjando-lhe um abrigo por alguns dias. O rapaz deu-lhe a chave de um apartamento. Em troca, recebeu os efeitos habituais da repressão, e mais tarde viveu anos de exílio na Suíça”. Em seu livro A Ditadura Envergonhada, Elio Gaspari conta: “Com as regalias ampliadas, era-lhe permitido ir à cidade. Numa ocasião surpreendeu o ministro-conselheiro da embaixada do Chile, visitando-o no escritório e pedindo-lhe asilo. Quando o diplomata lhe perguntou o que fazia em liberdade, respondeu que tinha licença dos carcereiros. O chileno, estupefato, recusou-lhe o pedido”.

Soledad Viedma, morta grávida do filho de Anselmo

Em outro livro (A Ditadura Escancarada) Gaspari relata: “A última operação de Anselmo, na primeira semana de janeiro de 1973, (...) resultou numa das maiores e mais cruéis chacinas da ditadura. Um combinado de oficiais do GTE e do DOPS paulista matou, no Recife, seis quadros da VPR. Capturados em pelo menos quatro lugares diferentes, apareceram numa pobre chácara da periferia. Lá, segundo a versão oficial, deu-se um tiroteio (...). Os mortos da VPR teriam disparado dezoito tiros, sem acertar um só. Receberam 26, catorze na cabeça. (...) A advogada Mércia de Albuquerque Ferreira viu os cadáveres no necrotério. Estavam brutalmente desfigurados.”

Este ser rastejante agora pede “reparação”, ou seja, ele quer receber pelo tempo em que estaria na Marinha, caso não tivesse sido expulso em 1964. Anselmo também reivindica uma pensão, pois alega que estaria vivendo com dificuldades financeiras – embora, contraditoriamente, admita que seja sustentado por três “amigos” empresários. Na mesma coluna de 2009, Janio de Freitas diz que “Anselmo diz ter dificuldades financeiras (...). Tais dificuldades, supondo-se que existam, não eliminam a questão de como se manteve nos últimos 45 anos. E, ainda, o fato de que os serviços secretos e as correntes militares da ditadura, ou delas originárias, nunca abandonaram um dos seus que se mantivesse fiel, como Anselmo. Os anos desde o fim da ditadura estão repletos de nomes e histórias assim. E, por gratidão ou dever funcional, a Marinha e a ditadura deixaram provas do tratamento especial ao dito cabo Anselmo".

Sua reaparição, no momento em que se discute a criação da Comissão da Verdade, certamente é cortina de fumaça. Suas motivações, como diz Janio de Freitas, vão muito além da compensação financeira. É possível que ele esteja, como sugeriu Celso Lungaretti, “cumprindo uma nova missão de agente provocador: a de fornecer um trunfo propagandístico contra o programa de anistia federal, caso este indefira o seu pedido”.

“É tudo de que precisa a extrema-direita para infestar a internet com acusações de que estariam sendo adotados dois pesos e duas medidas. Alvejar as reparações que o Brasil concede seguindo recomendações da ONU está entre os carro-chefes da propaganda enganosa dos Ternumas da vida”, diz Lungaretti.

Parafraseando Oscar Wilde em De Profundis, o cabo Anselmo passou não da obscuridade à momentânea notoriedade do crime, mas de um tipo de fama para um tipo de eternidade de infâmia. 

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