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quinta-feira, 3 de março de 2011

A MORTE DO "ANJO DE HAMBURGO"

Morreu hoje Aracy Moebius de Carvalho Guimarães Rosa, mulher do grande escritor João Guimarães Rosa. Mas ela teve luz própria - e que luz! Durante a II Guerra Mundial, Aracy arriscou-se para salvar a vida de judeus perseguidos pelos nazistas. Reproduzo, abaixo, reportagem que escrevi, com Hugo Studart, três anos atrás, na revista ISTOÉ.     



UMA HEROÍNA QUASE ESQUECIDA


A fascinante história de Aracy Guimarães Rosa, uma brasileira que ajudou a salvar dezenas de judeus do nazismo e foi colocada por Israel no mesmo patamar de mitos como Oskar Schindler


Cláudio Camargo e Hugo Studart


Dona Aracy está prestes a completar cem anos. Mora com o filho único Eduardo e a nora Beatriz num apartamento nos Jardins, em São Paulo. Ela já não anda e não reconhece ninguém – à exceção do filho, vez por outra. Sofre de Alzheimer. Sob os cabelos completamente embranquecidos, brilham olhos faiscantes. Um sorriso maroto, intermitente, brota de seu rosto, resgatando de maneira tênue a energia da mulher corajosa, determinada e inteligente que ela foi no passado. E, acima de tudo, discreta. Tão discreta que poucos conhecem sua fascinante história. Paranaense, filha de pai brasileiro e mãe alemã, separada do primeiro marido, Johann von Tess, numa época em que o casamento era sagrado, Aracy Moebius de Carvalho foi para a Alemanha em 1934 morar com uma tia e com o filho Eduardo, então com três anos. Fluente em alemão, francês e inglês, encontrou trabalho no consulado brasileiro em Hamburgo, como chefe do setor de vistos. Chocada com a perseguição aos judeus promovida pelo III Reich, Aracy resolveu ignorar as determinações do Itamaraty para impedir a entrada dos “semitas” no Brasil e ajudou a conceder vistos a dezenas deles, talvez uma centena. Em 1938, o diplomata João Guimarães Rosa, que depois se tornaria um dos maiores escritores brasileiros, foi nomeado cônsul-adjunto em Hamburgo. Rosa teve pleno conhecimento da “transgressão” de Aracy e lhe deu apoio. Eles se casaram em 1940. Viveram em Hamburgo, sob bombardeios da RAF (Royal Air Force), até voltarem ao Brasil, em 1942. Grande Sertão: Veredas, de 1956, obra-prima da literatura brasileira, foi dedicado a Aracy, carinhosamente chamada de “Ara” por Guimarães Rosa. Dedicado, não; dado: “A Aracy, minha mulher, Ara, pertence esse livro”, diz a epígrafe.


A solidariedade do casal a perseguidos não se limitou à época do nazismo. Em 1964, eles ajudaram o jornalista e crítico literário Franklin de Oliveira a se exilar. Em 1968, quando as trevas do AI-5 desabaram sobre o País, Aracy, já viúva, escondeu em sua casa no Rio de Janeiro o cantor e compositor Geraldo Vandré. Pelo seu trabalho em Hamburgo, em 1983 Aracy de Carvalho Guimarães Rosa foi incluída entre os quase 22 mil nomes que estão no Jardim dos Justos, no Museu do Holocausto, em Jerusalém. Trata-se de uma homenagem e um reconhecimento que o Estado de Israel presta aos góim (não-judeus) que ajudaram judeus a escapar do genocídio nazista. Entre os mais famosos estão o empresário alemão Oskar Schindler – que inspirou o filme A Lista de Schindler, de Steven Spielberg –, e o diplomata sueco Raoul Wallenberg. Apenas outro brasileiro, o embaixador Luiz Martins de Souza Dantas (1876-1954), recebeu a mesma honraria, em 2003. “Discreta, sem jamais ter caído na tentação de se promover por ter sido quem foi, Aracy paga hoje o preço do esquecimento”, diz o historiador e escritor René Daniel Decol, empenhado no resgate dessa personagem. “Até sua influência sobre o escritor tem sido negligenciada pela crítica, pelos historiadores da literatura e pela mídia”, completa Decol.


Segundo a Concise Encyclopedia of the Holocaust, editada pela International School for Holocaust Studies, Yad Vashem, Aracy começou a ajudar os judeus depois do progrom ocorrido na noite de 9 de novembro de 1938, que ficaria conhecido como Kristallnacht Noite dos Cristais. Naquela noite, hordas nazistas na Alemanha e Áustria atacaram e destruíram sinagogas, residências e estabelecimentos comerciais judaicos, matando cerca de 90 pessoas, marcando o início da repressão aos judeus que terminaria na “solução final”, o extermínio puro e simples dos herdeiros de Moisés. Apesar de ter um filho pequeno e a mãe que dependia dela, Aracy não se intimidou. “Minha mãe não achava aquilo justo, ignorou a determinação e, com a maior discrição, continuou a preparar os processos de vistos para judeus, à revelia de seus superiores”, disse a ISTOÉ o advogado Eduardo de Carvalho Tess, filho de Aracy. Para tanto, a brasileira contou com a cumplicidade de um funcionário da polícia de Hamburgo, que emitia passaportes para judeus sem o infame “J” vermelho que os identificava como tais. Isso viabilizava a emissão de vistos para eles, que passavam por europeus. “Depois, ela enfiava os vistos no meio da papelada que despachava com o cônsul-geral, que os assinava sem ver”, diz Tess.

Aracy também arriscou a vida usando clandestinamente o carro do serviço consular para transportar judeus que se escondiam em sua casa e em casas de amigos e para distribuir entre eles alimentos que ela desviava da cota que o consulado recebia – na época, a Alemanha vivia sob racionamento. “Muitas vezes, ela transportou judeus no porta-malas do carro. Chegou a levar um deles no carro do consulado – me lembro que era um Opel Olympia alemão – para a Dinamarca”, conta Eduardo Tess. Muitas vezes, Aracy era parada pela Gestapo. Personalidade forte, não se intimidava. Pelo menos uma vez, enfrentou os policiais de dedo em riste, desconcertando-os com seu alemão impecável. “Minha mãe exibia muita segurança e autoridade; os alemães respeitavam a autoridade”, atesta Eduardo.


Testemunhos de judeus que foram salvos por Aracy dão conta também que ela os acompanhava até o camarote do navio para assegurar proteção diplomática e que, muitas vezes, levava as jóias, bens e dinheiro dos refugiados em sua bolsa para evitar que fossem confiscados pela polícia nazista. Uma delas é Maria Margareth Bertel Levy, que também está prestes a completar 100 anos e, por problemas de saúde, já não pode mais falar. Em 2006, contudo, ela gravou um depoimento ao historiador René Decol: “Aracy me levou pessoalmente ao navio, usando seu passaporte diplomático”. Margareth talvez seja a última das pessoas salvas por Aracy ainda viva. “Pelas informações que tenho, minha mãe deve ter salvo, no total, cerca de cem pessoas”, diz Eduardo Tess. Uma das poucas vezes que Aracy falou sobre si foi em 1983, quando recebeu a homenagem do Estado de Israel: “Nunca tive medo, quem tinha medo era o Joãozinho (o escritor Guimarães Rosa). Ele dizia que eu exagerava, mas não se metia muito e me deixava ir fazendo”, disse Aracy ao Jornal do Brasil.

Aracy atuou espremida entre o nazismo alemão e o Estado Novo de Getúlio Vargas, no contexto maior de uma era que o filósofo britânico Isaiah Berlin definiu como “a mais terrível da história”. O Brasil atravessava tempos de racismo e xenofobia. Desde 1921, sucessivos governos vinham criando barreiras à entrada dos “apátridas” da Primeira Guerra Mundial, em especial aos judeus russos fugidos da Revolução Bolchevique de 1917, tratados num documento oficial como “semitas indesejáveis para compor a população brasileira”. Em 1933, Adolf Hitler tomou o poder na Alemanha e começou a perseguir judeus, ciganos, homossexuais, liberais, socialistas e comunistas. No Brasil, a Assembléia Constituinte de 1934 discutiu abertamente políticas de “branqueamento”, a eugenia estava em alta, o assunto da hora era o “perigo amarelo” (os japoneses) e nossas elites acreditavam numa relação entre a etnia e a ética. Foi então que o Brasil começou a restringir a entrada de “indesejáveis”. Chegou-se a discutir a proibição a imigração de japoneses e negros, mas logo essa aberração foi substituída por cotas de imigração, que privilegiava alemães, portugueses e suecos. Em 1935 Hitler criou as Leis de Nuremberg contra os judeus e começou a avançar sobre o leste europeu. Aumentou então a fuga de judeus para as Américas. De início, eles entravam no Brasil na cota de alemães e austríacos. Aí, o Itamaraty reagiu com a Circular Secreta 1127, de 1937, restringindo a entrada de todos os “semitas”.

As embaixadas brasileiras na Europa tinham ordens expressas do Itamaraty para que não conceder vistos a judeus. As representações mais duras eram as da Alemanha, onde o embaixador Cyro de Freitas Vale era um germanófilo, antissemita e simpatizante assumido do nazismo, e da Itália, onde o encarregado de negócios, Jorge Latour, também era um antissemita agressivo. Cyro Vale chegou a enviar uma carta ao presidente Getúlio Vargas reclamando de uma nova circular do Itamaraty que abria exceções para a entrada de “semitas desqualificados” no Brasil. O chefe de Aracy, o cônsul-geral do Brasil em Hamburgo, Joaquim de Souza Ribeiro, não era antissemita, mas um diplomata disciplinado. Dificultava ao máximo a concessão de vistos a judeus para não desagradar o embaixador, o Itamaraty e o governo. “Eram raríssimos os funcionários do Itamaraty que ajudavam os judeus”, atesta a professora da USP Maria Luiza Tucci Carneiro, autora de O Antissemitismo na Era Vargas. “Se a Aracy facilitou, o fez correndo perigo”.


De volta ao Brasil, Aracy se dedicou inteiramente a colaborar com a atividade literária do marido. Mas ainda voltaria a desafiar o arbítrio. O escritor Franklin de Oliveira relata no prefácio de 1992 de Grande Sertão: Veredas, que em 1964, quando começou a caça às bruxas, Aracy e Guimarães Rosa quiseram que ele fosse se asilar na casa deles. “Recusei: poderia comprometê-lo e eu não tinha esse direito”, registra Oliveira. “Só quando viu que não me demoveria da minha decisão, organizou uma lista de embaixadas nas quais eu pudesse buscar o direito de asilo”. Em 1968, pouco depois de ter se tornado viúva, Aracy participava de reuniões de intelectuais que se opunham à ditadura militar. Agora com luz própria. No dia 13 de dezembro, quando o regime endureceu e baixou o AI-5, um dos artistas caçados pela polícia encontrou guarida no apartamento de Aracy no Posto 6, Arpoador, com vista para o Forte de Copacabana. Era o compositor Geraldo Vandré, autor de Pra não dizer que não falei das flores. “Do apartamento, ele podia ver a movimentação de soldados e policiais na rua”, conta Eduardo Tess. Aracy não conhecia pessoalmente o compositor. Sabia que ele tinha feito a trilha sonora do filme A Hora e a Vez de Augusto Matraga (1965), de Roberto Santos, baseado num conto homônimo de Sagarana, primeiro livro de Guimarães Rosa.

Aquela senhora centenária, quase esquecida num apartamento dos Jardins, não se lembra de mais nada disso. Reservada, no passado pouco falou de sua epopéia, que veio à luz através dos depoimentos de alguns de seus protegidos – quase todos mortos. Duas pesquisadoras brasileiras, Adriana Jacobsen e Soraia Vilela, neste momento estão na Alemanha investigando a história de Aracy e de Guimarães Rosa naqueles tempos de trevas para produzir um documentário de longa-metragem. Talvez assim seja possível às novas gerações saber que um dia existiu uma brasileira chamada Aracy, conhecida entre os judeus como “o anjo de Hamburgo”.

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