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sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

BORGES E O ROUXINOL ETERNO DE KEATS

Jorge Luis Borges, o imortal
"Aqueles que freqüentaram a poesia lírica da Inglaterra não esquecerão a Ode a um rouxinol, que John Keats, tísico, pobre e talvez desafortunado no amor, compôs em um jardim em Hampstead, à idade de vinte e três anos, em uma das noites do mês de abril de 1819. Keats, no jardim suburbano, ouviu o eterno rouxinol de Ovídio e de Shakespeare, e sentiu sua própria mortalidade, e contrastou-a com a tênue voz imorredoura do invisível pássaro. Keats escrevera que o poeta deve dar poesias naturalmente, como a árvore dá folhas; duas ou três horas bastaram-lhe para compor essas páginas de inesgotável e insaciável beleza, que ele poliria muito pouco; sua virtude, que eu saiba, não foi discutida por ninguém, mas sim sua interpretação. O nó do problema está na penúltima estrofe. O homem circunstancial e mortal dirige-se ao pássaro, 'que não abatem as famintas gerações' e cuja voz, agora, é aquela que, em campos de Israel, em uma antiga tarde, ouviu Rute, a moabita.

Arthur Schopenhauer
 [...]

A Ode a um rouxinol data de 1819; em 1844 apareceu o segundo volume de O Mundo como Vontade e Representação. No capítulo 41, lê-se o seguinte: 'Perguntemo-nos com sinceridade se a andorinha deste verão é outra que não a do primeiro e se realmente o milagre de tirar algo do nada ocorreu milhões de vezes entre as duas para ser fraudado outras tantas pela aniquilação absoluta. Quem me ouvir assegurar que este gato aqui brincando é o mesmo que saltitava e traquinava neste lugar há trezentos anos pensará de mim o que quiser, mas loucura mais estranha é imaginar que é fundamentalmente outro'. Ou seja, o indivíduo é de certo modo a espécie, e o rouxinol de Keats é também o rouxinol de Rute.

Coleridge
Coleridge observa que todos os homens nascem aristotélicos ou platônicos. Os últimos sentem que as classes, as ordens e os gêneros são realidades; os primeiros, que são generalizações; para estes, a linguagem não passa de um aproximativo jogo de símbolos; para aqueles, é o mapa do universo. O platônico sabe que o universo é de certo modo um cosmos, uma ordem; essa ordem, para o aristotélico, pode ser um erro ou uma ficção de nosso conhecimento parcial. Através das latitudes e das épocas, os dois antagonistas imortais trocam de dialeto e de nome: um é Parmênides, Platão, Spinoza, Kant, Francis Bradley; o outro, Heráclito, Aristóteles, Locke, Hume, William James. Nas árduas escolas da Idade Média, todos invocam Aristóteles, mestre da humana razão (Dante, Convivio, IV, 2), mas os nominalistas são Aristóteles; os realistas, Platão. O nominalismo inglês do século XIV ressurge no escrupuloso idealismo inglês do século XVIII; a economia da fórmula de Occam, entia non sunt multiplicanda praeter necessitatem permite ou prefigura o não menos taxativo esse est percipi.

John Keats
Os homens, disse Coleridge, nascem aristotélicos ou platônicos; da mente inglesa cabe afirmar que nasceu aristotélica. O real, para essa mente, não são os conceitos abstratos, e sim os indivíduos; não o rouxinol genérico, e sim os rouxinóis concretos. E natural, é talvez inevitável, que na Inglaterra a Ode a um rouxinol não seja bem compreendida."

Jorge Luís Borges, Outras Inquisições

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