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domingo, 1 de agosto de 2010

UM ESTADISTA DO CARIBE

"Todos nós herdamos do sangue lusitano uma certa dosagem de lirismo", diz a letra de Fado Tropical, de Chico Buarque de Hollanda e Ruy Guerra. Já a história da América Hispânica, por sua vez, parece ter herdado um certo gosto espanhol pela "martiorologia", pelo messianismo e pela tragédia que embota a capacidade de reconhecer processos históricos verdadeiramente revolucionários. A saga da esquerda latino-americana está coalhada de líderes caídos, como Emiliano Zapata, Augusto Sandino, Farabundo Martí, Che Guevara e Salvador Allende. Na falta destes, tiranos vestutos como Fidel Castro, que se notabilizou pelo uso do paredón e pela ditadura de partido único, ou líderes histriônicos como Hugo Chávez, são entronizados no panteão da esquerda anti-imperialista. Mas uma verdadeira revolução pacífica e democrática, como a consumada por José Pepe Figueres Ferrer na Costa Rica como chefe de um governo de transição (1948) e em dois mandatos constitucionais (1953-1958 e 1970-1974), fica no limbo da História.











Filho de um médico catalão, José Pepe Figueres liderou uma revolta armada contra a oligarquia costa-riquenha em 1948, deflagrada contra uma fraude eleitoral. Em pouco mais de 40 dias, a Legião Caribe, uma força de estudantes, camponeses e militares, tomou o poder em San José. Don Pepe assumiu a liderança de uma Junta de Governo que convocou uma Assembléia Constituinte e se dissolveu depois que foi promulgada a Constituição, 18 meses depois. E o governo provisório tomou duas medidas radicais; a primeira foi a nacionalização dos bancos, que representou um golpe decisivo na burguesia compradora, beneficiando pequenos e médios empresários. "O caráter marcadamente comercial com que os bancos vinham operando, se bem que era bom para seus acionistas, que conseguiam uma aplicação segura ao financiar a importação de whisky, não é o mais saudável para um país que necessida desenvolver sua agricultura, suas indústrias e não conta fundamentalmente para tanto com outros recursos que não os do crédito bancário", justificou Figueres. A outra medida revolucionária foi a dissolução do Exército regular, que foi substituído por uma força policial, a Guarda Civil. Como resultado, a Costa Rica se tornou um dos países do Caribe que mais cresceram economicamente distribuindo renda e, na outra ponta, conseguiu evitar os dois flagelos que açoitariam a região a partir dos anos 50: guerras civis e ditaduras militares. E nem a dupla ameaça de uma rebelião armada de antigos revolucionários que não aceitavam a dissolução do Exército articulada a uma tentativa de invasão da Nicarágua, então nas mãos da sanguinária família Somoza, em 1955, fez Pepe voltar atrás nas suas decisões revolucionárias.
É verdade que, para conjurar a ameaça de invasão nicaraguense, foi crucial conseguir o apoio de Tio Sam. Figueres sabia que um país tão pequeno e tão próximo dos Estados Unidos como a Costa Rica não poderia desafiar o poderio de Washington. Por isso, explorando habilmente os contatos que tinha com o establishment americano - ele mesmo era casado com uma americana - Don Pepe conseguiu que Washington condenasse a invasão nicaraguense - e lembre-se que Somoza, o ditador nicaraguense, era "a son of a bitch but our son of a bitch" (um filho da puta, mas o nosso filho da puta), segundo Allen Dulles, diretor da CIA. Naquele início da guerra fria, Figueres convenceu os americanos de que reformas sociais eram a melhor maneira de se evitar o comunismo. E assim os americanos, embora contrariados, tiveram que engolir quando o governo da Costa Rica taxou a subsdiária da United Fruit, La Bananera, com impostos de 15%, depois 30% e em seguida iniciou o processo de nacionalização da indústria bananeira. E Don Pepe nunca deixou de manifestar solidariedade anti-imperilista, apoiando movimentos revolucionários no Caribe, como a Revolução Cubana de 1959 e a Revolução Nicaraguense de 1979, embora discordasse publicamente do caminho marxista-leninista seguido por Fidel Castro. 
Hoje, a Costa Rica é um país predominantemente de classe média - urbana e rural - com cerca de 20% de pobres numa região em que a pobreza é generalizada e com uma agricultura diversificada, sem as pragas da monocultura e do latifúndio. E, como já se disse, foi o único país que escapou do turbilhão de ditaduras truculentas e guerras civis sangrentas que assolou a região e, só nos anos 70, matou 200 mil pessoas na Guatemala, 75 mil em El Salvador e outras dezenas de milhares na Nicarágua.
Como se não bastasse, a Costa Rica é hoje um país ecologicamente correto, com cerca de 30% de seu território deslumbrante constituído por unidades de conservação ambiental. 
Ah, Don Pepe não tombou heroicamente nem virou ditador. Morreu pacatamente em 1990, aos 84 anos.  
"Infeliz do povo que precisa de herois", dizia Bertrold Brecht.

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